
Marie Curie manipulava material radioativo com as próprias mãos. Mais de 100 anos depois de seu trabalho revolucionário, a repórter Sophie Hardach viajou até Paris para rastrear os vestígios deixados para trás. O fato de Marie Curie manusear o rádio com as próprias mãos, sem proteção, acabou deixando vários rastros do elemento em objetos que ela tocava
Edouard Taufenbach e Bastien Pourtout
O contador Geiger começa a piscar e a apitar quando encosta na maçaneta de uma porta parisiense de mais de 100 anos. Estou parada na entrada entre o antigo laboratório e o escritório de Marie Curie, cientista nascida na Polônia e radicada em Paris que inventou o termo radioatividade.
O museu que abriga o laboratório me convidou para rastrear as impressões digitais radioativas deixadas por ela quando trabalhava no local no início do século XX. Muitas dessas marcas invisíveis estão espalhadas por suas anotações, livros e móveis pessoais, algumas descobertas apenas recentemente. Na maçaneta está um dos vestígios. Há outro na parte de trás da cadeira dela.
A reação do contador Geiger, e os números que aparecem no visor, sugerem a presença de radioatividade de fundo acima do esperado, embora em níveis baixos e sem perigo. Em microsievert, unidade que mede o impacto potencial da radiação no corpo humano, o valor chega a 0.24 microsievert por hora, dentro dos limites seguros, de acordo com especialistas.
Marie Curie trabalhou aqui entre 1914 e 1934, o ano de sua morte, manuseando elementos radioativos como o rádio, que ela e o marido, Pierre Curie, descobriram em 1898.
Durante a maior parte da vida, ela fez isso usando as próprias mãos — sem usar qualquer proteção —, que foram ficando cada vez mais marcadas pelo rádio. Ao tocar em outras coisas, ela acabava transferindo os traços desses elementos.
Rastrear impressões digitais pelos espaços em que Marie Curie trabalhou nos dá uma ideia de como ela se movia “do laboratório para o escritório, abria a porta e puxava a cadeira para se sentar”, diz Renaud Huynh, diretor do Museu Curie, enquanto me guia de vestígio em vestígio.
Algumas impressões radioativas, como as encontrados nos cadernos e anotações de Curie, já são conhecidas há bastante tempo. Uma análise feita em 1950 chegou a tornar algumas delas visíveis usando uma chapa fotográfica. A contaminação aparecia como pontos e manchas, sugerindo poeira radioativa de laboratório nas páginas ou gotas de soluções ferventes de sais de rádio que respingavam nos papéis.
Outras impressões digitais foram reveladas com mais detalhes por testes realizados nos últimos anos: foram encontradas nas portas de um armário da casa dela, em gavetas, nas páginas de livros, em anotações de aulas e até em uma mesa de jantar que ficava na casa da família Curie.
Para cada item, especialistas enfrentam uma difícil decisão: se os preservam como patrimônio histórico ou, nos casos em que a contaminação representa algum risco à saúde pública, se enviam para um depósito de lixo nuclear. O armário, por exemplo, acabou sendo destruído.
O laboratório e o escritório de Marie Curie, cujas janelas altas dão vista para um jardim de rosas que ela mesma idealizou, normalmente ficam isolados por um cordão vermelho — podem ser vistos, mas não acessados por visitantes do museu. Esses espaços são parte do Instituto do Rádio, que ela fundou, e ainda permanece no coração de um campus de pesquisa ativo e movimentado.
“Há uma grande probabilidade de que os vestígios de radioatividade tenham sido deixados por Marie Curie, mas também pode ter sido sua filha [Irène Joliot-Curie], que depois usou o mesmo escritório”, disse Huynh.
“De toda forma, é um vestígio material do passado, uma forma de patrimônio. Se apagássemos essas marcas, estaríamos perdendo essa memória. Pode parecer um detalhe, mas ele evoca um modo de contaminação, uma certa forma de trabalhar, e evoca também uma época.”
Huynh me convidou para visitar o museu fora do horário de funcionamento, e também para ir até o arquivo ali perto para falar sobre os vestígios. Como a radioatividade é invisível, eu perguntei a ele, antes da visita, se poderia trazer um contador Geiger para dar vida a essas impressões para nossos leitores. Ele concordou, e também me deixou convidar Marc Ammerich, um especialista em radiação, para me ajudar a medir e interpretar os resultados.
Ammerich passou 40 anos trabalhando para agências francesas de radioproteção, inspecionando a segurança das usinas nucleares do país. Desde 2019, ele está encarregado de realizar testes completos na coleção do museu.
Até agora, ele já testou cerca de 9 mil itens de Curie e de sua família, incluindo a mesa de jantar extensível, onde ele encontrou duas impressões radioativas próximas uma da outra, como duas marcas de mão, exatamente no lugar onde alguém seguraria a mesa para puxá-la e acomodá-la para visitantes.
Voltar sua atenção para o legado dos Curie tem sido uma experiência especial, diz Ammerich. “Medir os cadernos onde eles escreveram sobre suas descobertas de rádio e polônio, medir os instrumentos que eles usaram, é algo extraordinário. É como segurar a história da radioatividade nas minhas mãos.”
Nos tempos do galpão
Marie Curie fazia doutorado em Paris nos anos de 1890, quando ela se deparou com um fenômeno curioso.
Ela estava estudando a recente descoberta dos misteriosos raios emitidos pelo urânio. O cientista Henri Becquerel tinha descrito algumas propriedades interessantes desses raios: eles emitiam luz e também faziam o ar conduzir eletricidade.
Curie propôs a palavra radioatividade para esses raios peculiares, criando o termo que ainda é usado hoje em dia.
Ao testar diversos minérios para medir os níveis de radioatividade, Marie Curie percebeu algo surpreendente: alguns desses minérios eram muito mais radioativos do que os elementos radioativos já conhecidos (urânio e tório).
Depois de checar suas medições, ela concluiu que havia apenas uma explicação possível: deveria haver outro elemento, ainda desconhecido, altamente radioativo nesses minérios.
Para encontrar esse elemento misterioso, ela começou a refinar um minério de urânio chamado pechblenda ou uraninita, removendo todos os elementos já conhecidos, até que restasse apenas o elemento desconhecido.
Animado com o projeto, Pierre se juntou à Marie Curie. Eles trituravam o minério, dissolviam o pó resultante em ácido, filtravam em várias etapas diferentes e, com isso, obtinham uma produto cada vez mais concentrado e cada vez mais radioativo, explica Huynh.
Foi um processo árduo, como a própria Marie Curie descreveu: “A vida de um grande cientista em seu laboratório não é, como muitos pensam, uma paz tranquila. Na maioria das vezes, é uma batalha dura contra as coisas, contra o ambiente ao redor, e, acima de tudo, contra si mesmo.”
Sem ter acesso a um laboratório apropriado, eles trabalharam em um depósito e depois em um galpão de um prédio da universidade.
Nas descrições de Marie Curie, o galpão era mobiliado com “algumas mesas de pinho desgastadas, um fogão de ferro fundido, e não havia nenhum dispositivo de segurança”.
“Não havia exaustores para recolher os gases venenosos liberados em nossos tratamentos químicos. No entanto, foi nesse velho e miserável galpão que passamos os melhores e mais felizes anos de nossa vida, dedicando dias inteiros ao nosso trabalho”, ela escreveu.
Em 1898, ao final desse processo árduo de refinar a pechblenda e depois refinar ainda mais os pequenos cristais altamente radioativos, eles anunciaram a descoberta de dois novos elementos: polônio, que recebeu esse nome em homenagem à terra natal de Marie Curie, a Polônia, e o rádio.
“Era um ambiente muito tóxico”, diz Huynh. “Porque não havia apenas vapores e poeiras radioativos, mas eles também usavam vários produtos químicos para quebrar a pechblenda, que hoje são proibidos em laboratórios, como o mercúrio.”
O galpão não existe mais, foi demolido. O laboratório que está no museu é onde Marie Curie trabalhou depois disso.
Recentemente, Ammerich conduziu uma inspeção abrangente e uma revisão de segurança no museu. Ele e sua equipe removeram a contaminação superficial, como poeira levemente radioativa, de móveis do escritório preservado.
A radioatividade restante, bem fraca, vem dos traços que penetraram na madeira ou no metal, e agora estão dentro do material, ou seja, mesmo que alguém toque nos móveis hoje, não haverá transferência de contaminação.
“O laboratório já tinha sido descontaminado em 1980”, diz Huynh.
Naquela época, a prática no museu era “tentar esfregar a contaminação com esponjas abrasivas e, se a radioatividade ainda fosse detectada, isso significava que ela tinha penetrado no material, então eles jogavam tudo fora e substituíam por uma cópia”, ele explica.
O balcão do laboratório, por exemplo, foi substituído por uma réplica, conta Huynh. Hoje, impressões levemente radioativas, como as encontradas na cadeira e na maçaneta, são mantidas no local por serem consideradas um patrimônio.
“Esses vestígios históricos de radioatividade são muito importantes porque mostram as condições de trabalho de Marie Curie naquela época. Eles devem ser preservados a todo custo”, diz Thomas Beaufils, professor e museólogo da Universidade de Lille, especialista em conservação e proteção de patrimônio radioativo.
“Não há outro lugar no mundo onde a radioatividade tenha sido espalhada por um laboratório e por um escritório pela própria Marie Curie. Isso tem um valor patrimonial enorme.”
Hoje, o rádio, descoberto por Marie Curie durante sua pesquisa de doutorado, não é mais usado na França, sendo substituído por elementos mais seguros e mais fáceis de manejar, segundo Ammerich. E, claro, a forma como os cientistas lidam com materiais radioativos mudou completamente.
“Se Marie Curie fosse uma estudante de doutorado hoje, ela teria, antes de tudo, que solicitar uma série de autorizações para trabalhar com esses materiais radioativos”, diz Ammerich.
“E ela só poderia fazer sua pesquisa em um laboratório autorizado, com toda a segurança necessária e equipamentos de ventilação. Certamente, ela não manusearia esses materiais em uma mesa ou na bancada de um laboratório, ela usaria um glove box, um equipamento selado com materiais radioativos dentro”, completa.
‘Medindo’ a história
Quando nós planejamos a visita, Huynh disse que poderíamos medir qualquer coisa que quiséssemos no laboratório, no escritório e no arquivo, desde que isso fosse feito em segurança.
Dois fotógrafos me acompanharam e registraram nossos testes — que levaram seis horas — enquanto mergulhávamos na fascinante trajetória de pesquisa e descobertas de Marie e Pierre Curie.
Diante da riqueza dos objetos presentes no arquivo, decidi focar em itens que poderiam nos transportar para dois períodos cruciais na história dos Curie: os primeiros anos, quando eles descobriram o rádio juntos; e a fase em que Marie Curie liderou, sozinha, as pesquisas do Instituto Rádio, depois da morte de Pierre em 1906.
Ammerich me mostra como fazer medições significativas. Ele trouxe uma maleta cheia de detectores diferentes. Um deles é um contador Geiger amarelo, do tamanho de um palmo, usado para dois tipos de medição. O primeiro teste, medido em “contagens por segundo”, detecta se a radiação está presente, na forma alfa, beta ou gama. Esse teste geral ajuda a detectar se o objeto que estamos analisando é radioativo ou não.
Se o objeto registrar radioatividade acima do esperado, fazemos a segunda medição, que mostra o impacto potencial desses raios no corpo humano, medido em microsieverts por hora. Isso nos ajuda a verificar se o nível de radioatividade do objeto representa risco à saúde, aumentando, por exemplo, o risco de câncer a longo prazo.
Nós também usamos um espectrômetro, que é capaz de fornecer informações mais detalhadas, como qual elemento radioativo está sendo medido. E testamos algumas superfícies não radioativas, para controle.
Ammerich já havia testado anteriormente todos os objetos que olhamos, como parte de sua avaliação da coleção. Ele também verificou se havia risco para os visitantes ou funcionários do museu, devido à presença de objetos levemente radioativos.
“Não há perigo nenhum”, ele afirma, com base em sua avaliação.
Também não houve qualquer risco para nós durante as medições — que foram feitas apenas para que eu pudesse compreender melhor e relatar as impressões radioativas no local.
Uma anotação de laboratório radioativa
No arquivo do museu, Huynh abre uma caixa com um pequeno adesivo na lateral alertando sobre a radioatividade. Dentro dela há um documento escrito à mão, uma anotação de laboratório, de 1902, de Marie e Pierre Curie.
“No topo da página você vê a letra de Pierre Curie, e logo abaixo, uma outra letra, mais caprichada, que é a de Marie Curie”, diz Huynh, apontando para as linhas já meio apagadas.
Os dois tinham o costume de compartilhar anotações, ele explica. “Nas anotações de laboratório, fica muito claro como eles trabalhavam juntos como iguais, com respeito mútuo. Foi uma colaboração científica muito intensa e respeitosa, uma verdadeira troca.”
Quando Pierre Curie foi indicado ao Prêmio Nobel junto com Becquerel, em 1903, “foi ele que insistiu que sua esposa também devia ser incluída”, acrescenta Huynh, o que levou os três a ganharem juntos a premiação, que até então nunca havia sido concedida a uma mulher.
A anotação registra um momento crucial na pesquisa deles. “Aqui, ela calcula o peso atômico do rádio” — um passo fundamental na busca para provar que esse novo elemento existia. Marie Curie escreve o resultado como 223.3, muito próximo do peso que hoje é conhecido, 226.
“É um documento extraordinário”, Huynh afirma. “É o cálculo que prova que, sim, ele tem um peso atômico que o diferencia dos outros elementos, que garante seu lugar na tabela periódica, e também foi escrito durante um período de uma energia intelectual incrível.”
Na verdade, Frédéric Joliot, genro dos Curie, fez uma cópia dessa anotação de laboratório com uma chapa fotográfica na década de 1950 para mostrar a contaminação, e também a mediu com um contador Geiger, sendo possivelmente a primeira pessoa a investigar o legado radioativo da família.
“É comovente ouvir [o som do detector]…o mesmo rádio extraído e manipulado por Pierre e Marie Curie”, ele escreveu na época.
Os segredos dos pavimentos parisienses
Enquanto medimos os objetos, nós também registramos as medições de superfícies que não têm nenhuma relação com os Curie e seu patrimônio, para termos algo para comparar com os resultados.
Um piso comum de parquet parisiense, em um prédio que nunca foi usado pelos Curie, nos dá uma leitura de 0.11 microsievert por hora. Essa é a radiação de fundo a qual uma pessoa está exposta todos os dias, vinda de fontes naturais como o solo e a radiação cósmica, Ammerich explica.
Ele pontua que nós, humanos, também somos radioativos, já que nosso corpo contém elementos radioativos como o potássio.
Na França, o limite legal de exposição de uma pessoa à radioatividade, além da exposição natural e médica, é de 1 millisievert (1.000 microsievert) por ano. Já para trabalhadores de instalações nucleares é de 20 millisievert (20.000 microsievert) por ano.
Quando colocamos o medidor em um pavimento qualquer, do lado de fora do prédio, a leitura aumenta ligeiramente para 0.19 microsievert por hora. Isso acontece porque os pavimentos parisienses são feitos de granito, que pode conter elementos radioativos como urânio, segundo Ammerich.
Nos revezamos cuidadosamente para passar o contador Geiger sobre a anotação de laboratório dos Curie. O aparelho começa a emitir um som, tendo detectado radioatividade acima do normal, especialmente na parte inferior da página, onde mãos humanas provavelmente tocaram mais.
Ainda assim, os níveis são muito baixos do ponto de vista da saúde e segurança. “A anotação não apresenta nenhum tipo de perigo”, afirma Ammerich.
No museu, nós medimos as áreas públicas por onde os visitantes circulam — os níveis registrados são equivalentes à radiação de fundo, de 0.11 microsievert por hora. “É o nível da radioatividade natural, do solo, do sol, das pessoas ao nosso redor, com seu potássio”, diz Ammerich.
A parte de trás da cadeira do escritório de Marie Curie, a maçaneta da porta e um instrumento chamado eletrômetro de quartzo piezoelétrico — que os Curie usavam para medir a radioatividade — apresentam leituras um pouco acima da radiação de fundo, mas ainda dentro dos limites considerados seguros.
Ammerich explica que a avaliação geral de segurança de determinado lugar ou objeto não se baseia apenas nessas medições. Ela é estimada com base em uma série de fatores, incluindo o tempo de exposição, a distância do objeto e quais partes do corpo são expostas.
Os diferentes tipos de radiação também fazem diferença: a radiação alfa pode ser, em grande parte, bloqueada pela pele humana, e completamente bloqueada por um pedaço de papel. Já a radiação gama é mais penetrante, mas pode ser bloqueada por concreto ou chumbo.
O rádio, principal fonte de contaminação do patrimônio dos Curie, emite radiações alfa, beta e gama, mas principalmente alfa.
A avaliação de risco feita por Ammerich para os visitantes e funcionários do museu foi baseada em medições detalhadas de todos os objetos, além desses fatores abrangentes, e concluiu que não há risco.
‘Brilhando como luzes de fada’
Marie e Pierre Curie perceberam que seus materiais radioativos, como os sais de rádio e gases radioativos, estavam contaminando tudo no galpão.
“A poeira, o ar da sala, as roupas são radioativos”, reportou Marie Curie em sua tese de doutorado, em 1903.
Apesar disso, nessa fase, eles não pareciam preocupados com a própria segurança. A única preocupação era que a contaminação pudesse comprometer os resultados científicos.
Com o tempo, Marie Curie e outros perceberam que as mãos dela estavam “com calos, endurecidas, profundamente queimadas pelo rádio”. Pierre Curie colocou repetidamente sais de rádio sobre a própria pele para testar os efeitos. Lesões avermelhadas, parecidas com queimaduras, surgiram.
Isso, porém, não parecia assustá-lo. Pelo contrário, ele e outros cientistas acreditavam que esse efeito poderia ser útil no tratamento de tumores — um insight que levou aos primeiros tratamentos eficazes contra o câncer. Apenas depois os cientistas descobriram que a exposição ao rádio e outros materiais radioativos também pode aumentar o risco de câncer.
Outros cientistas da época também faziam experimentos livremente com o rádio — por exemplo, aplicavam sais de rádio nas têmporas ou sobre as pálpebras fechadas e relatavam que isso enchia seus olhos fechados de luz.
Marie e Pierre Curie observavam o rádio recém-descoberto com esperança e deslumbramento: ele emitia calor e brilhava lindamente no escuro. Eles foram ao galpão à noite para admirar os frascos e tubos de sais de rádio nas prateleiras e mesas improvisadas: “Como luzes de fadas”, Marie Curie descreveu.
O armário dos Curie
Nem todo o patrimônio dos Curie está sendo preservado. Ainda hoje, parte dele acaba em instalações de resíduos nucleares, nos casos em que as preocupações com a segurança pública se sobrepõem à proteção do patrimônio histórico.
No dia anterior à minha visita ao Museu Curie e ao seu arquivo, me encontrei com especialistas da Andra, a agência francesa responsável pela gestão de resíduos radioativos. Durante o almoço em uma praça perto da sede da Andra, nos arredores de Paris, eles me contaram sobre algumas das tarefas mais surpreendentes que fazem parte das suas responsabilidades.
A Andra cuida de todo o resíduo radioativo proveniente das usinas nucleares da França, assim como de laboratórios de pesquisa e hospitais. Cerca de uma vez na semana, eles recebem uma ligação de alguém que encontrou em casa uma antiguidade potencialmente radioativa — como despertadores da décadas de 1920, quando o rádio não era considerado perigoso e usado na tinta desses relógios.
Naquela época, o rádio também era utilizado em cosméticos e até em fontes de refrigerante especiais que produziam água radioativa, acreditando-se que era benéfica para a saúde.
Os especialistas da Andra testaram essas relíquias e colocaram as peças contaminadas em recipientes de lixo radioativo. Em alguns casos, antiguidades, como as fontes, são descontaminadas, removendo o rádio, e depois entregues ao Museu Curie.
“Seguimos as pegadas de Marie Curie”, diz Nicolas Benoit, especialista da Andra que cuida da remediação de locais contaminados pela radioatividade.
“Cada vez que visitamos um local onde há rádio, lembramos dela. E não ficamos bravos com ela, de forma alguma, porque, no fim das contas, eles lidavam com o rádio de um jeito meio descuidado, mas não tinham consciência dos riscos.”
Ele faz uma pausa e acrescenta: “E há um certo orgulho também, porque é como se estivéssemos fechando o ciclo, nós estamos terminando o trabalho dela”, ao cuidar dos objetos contaminados.
Em 2020, Benoit liderou uma operação incomum: uma visita à casa de Hélène Langevin-Joliot, uma física nuclear e membro da dinastia de cientistas dos Curie. Ela é neta de Pierre e Marie Curie; seus pais, Joliot-Curie e Frédéric Joliot ganharam o Prêmio Nobel em 1935 pela descoberta da radioatividade artificial. Na verdade, Irène agradeceu à mãe, Marie, por compartilhar com ela seu estoque raro de polônio, o que ajudou o casal nas pesquisas que levaram à descoberta.
O amor pela ciência foi passado de geração em geração, junto com amizades com outros cientistas e suas famílias, incluindo Albert Einstein.
Langevin-Joliot tinha em sua casa inúmeras relíquias de família, que pertenciam aos pais e também aos avós, o que fazia com que ela suspeitasse que elas tinham uma leve contaminação.
Isso, contudo, não a preocupava, já que conviveu com as relíquias por muitos anos, estava em boa saúde e considerava o risco baixo. Mas ela não queria deixar os objetos para trás e forçar outras pessoas a lidar com eles.
Depois de conversar com Huynh, o diretor do museu, ela convidou especialistas da Andra para ir até a sua casa e medir a contaminação nas relíquias.
“Foi um dos melhores momentos da minha vida”, diz Benoit, sobre a operação.
“Só de imaginar que Marie Curie usou aqueles objetos…isso foi realmente emocionante para nós, não é algo que você faz todo dia.”
Eles testaram o armário que pertenceu à Marie Curie — segundo ele, há fotos que mostram ela ao lado do móvel — e que foi passado de geração em geração.
“Nós o esvaziamos e o testamos. A contaminação estava acima do nível em todas as portas, principalmente no local em que se abre o armário. E nas gavetas, fechaduras, em todo o lugar onde ela possivelmente tocou”, ele diz.
“Nós tentamos descontaminar a madeira, sem estragá-la, mas isso não foi possível, por que os vestígios de rádio haviam penetrado o material”, acrescenta.
A preocupação era que, se o armário fosse mantido poderia acabar nas mãos de algum futuro proprietário que, sem saber da sua origem, usasse ou reaproveitasse a madeira de uma forma que espalhasse a contaminação.
Com o consentimento de Langevin-Joliot, o armário foi cortado em pedaços e incinerado em um depósito de lixo radioativo.
“O armário não existe mais. É triste, de cortar o coração, mas era assim que tinha que ser”, explica Benoit.
Avaliando os riscos
Hoje, o rádio é descrito, algumas vezes, como o elemento natural mais radioativo já descoberto. Mas Benoit questiona essa afirmação.
Do ponto de vista de segurança, “dizer que um elemento é mais radioativo do que o outro não faz muito sentido”, ele diz, já que estimar a radioatividade é mais complexo do que apenas medir o nível de atividade de um elemento (a taxa na qual o elemento radioativo se desintegra, medida contando o número de desintegrações por segundo).
É também preciso considerar sua “meia-vida”, o tempo necessário para que metade do elemento se desintegre — no caso do rádio, são 1.600 anos. Além disso, é preciso levar em conta o impacto real em seres humanos, o que depende de uma série de outros fatores.
“Se você pega o carbono-14, por exemplo, é um elemento que emite radiação. Mas apenas à uma distância muito pequena, alguns centímetros”, afirma. Ou seja, somente se estiver muito próximo, é que vai trazer algum tipo de risco.
Caixões de chumbo
Há um lado trágico no legado dos Curie. Já nos primeiros dias de trabalho com o rádio no galpão, Pierre percebeu que ele se sentia cada vez mais doente. Marie Curie também se sentia mal, acometida por uma fadiga misteriosa.
Ela morreu aos 66 anos, de leucemia, um câncer no sangue. No entanto, talvez não tenha sido o rádio o responsável pela sua morte. Segundo Huynh, o mais provável é que a causa tenha sido seu trabalho com raio X durante a Primeira Guerra Mundial, o que a teria exposto a um tipo de radiação conhecida por aumentar o risco de leucemia.
Irène e Frédéric Joliot-Curie morreram no final dos seus 50 anos, também de câncer. Antes de sua morte, Frédéric foi especialmente ativo na melhoria das normas de segurança e dos equipamentos para pessoas que trabalhavam com rádio.
Hoje, os Curie estão sepultados em uma cripta no monumento do Panthéon, em Paris, em caixões de chumbo, para bloquear qualquer radiação proveniente de vestígios presentes em seus corpos.
Anteriormente, eles estavam enterrados em um cemitério nos arredores de Paris. Nos anos de 1990, antes da transferência para o Panthéon, especialistas de radiação exumaram e testaram os corpos, detectando um certo nível de contaminação radioativa, para então colocá-los nos caixões de chumbo.
Para Ammerich, a experiência de lidar com pertences do casal é comovente. “Quando eu medi o nível de contaminação do diário de Marie Curie, no qual ela escreveu sobre a morte de seu marido, eu preciso ser honesto, eu chorei”, disse.
Na visão dele, seria uma pena remover os pequenos vestígios remanescentes do escritório dela em Paris.
“Imagine se limpasse tudo e, no futuro, não restasse nada que comprovasse o que aconteceu aqui.”
Beaufils, o museólogo, também enfatiza a importância de preservar e proteger esse tipo de patrimônio radioativo.
“Do ponto de vista histórico, nossa sociedade foi construída em cima desses objetos e memórias do passado. Se nós não protegermos esse material, seremos uma nação, uma sociedade sem profundidade histórica”, afirma.
“E uma sociedade sem profundidade vai ter dificuldade para se desenvolver, tanto do ponto de vista social quanto tecnológico”, ele acrescenta.
Huynh vê o Museu Curie como “um elo entre o passado e o futuro”, especialmente por estar localizado em um campus de pesquisa sobre o câncer, o Centro de Pesquisa Instituto Curie.
Quando eu visitei o local, vi pesquisadores circulando pelo jardim de rosas ao lado do laboratório de Marie Curie — vestidos com jeans e camisetas, não com ternos e vestidos longos, como na época dela. Huynh me contou que também há laboratórios ativos nos andares acima e abaixo do museu.
“Muitos pesquisadores aqui sentem orgulho desse legado”, afirma. “É uma espécie de espírito Curie.”
Por G1