
Por Daniele Agapito
É. Há uns 5, ou 12, ou 56 anos que não víamos o cinema brasileiro assim, tão comentado. Aos poucos, o mundo percebe que existe um país falante de português na América do Sul. E que, além do carnaval, do futebol, do samba e do “brazilian wax” — depilação total à moda brasileira —, a gente carrega um passado de repressão, censura, violência de Estado e um sem-número de notícias substituídas por receitas de bolo nas páginas dos jornais.
O Brasil dos anos 70 jamais imaginaria ver um filme como O Agente Secreto premiado em Cannes. Cortejo da Orquestra Popular do Recife nas escadarias do Palais des Festivals, Kleber Mendonça e Wagner Moura carregando troféus, sucesso de crítica, matérias no The Guardian, Washington Post, Variety, Vanity Fair, The New Yorker… e uma foto que roda o mundo: Wagner Moura, com olhar distante, atendendo uma ligação debaixo do saudoso “orelhão” amarelo, clássico do mobiliário urbano brasileiro, criado em 1972 pela arquiteta Chu Ming Silveira, inspirado na casca de ovo.
Essa foto tem autoria. Foi milimetricamente pensada por Victor Jucá, fotógrafo de cinema — ou de still. É ele quem assina as imagens que nos situam no tempo, no espaço e no humor do filme, e que depois estampam cartazes, materiais de imprensa e redes sociais.
O fotógrafo de still é uma presença sorrateira no set. Move-se entre uma cena e outra, espreitando, esperando, até clicar a foto.
“A gente trabalha com câmera fotográfica, claro, mas também com sensibilidade. Precisa sacar o tom do filme, saber onde colocar o corpo, quando apertar o clique. E isso tudo sem atrapalhar ninguém. É quase como ser um espião poético no set”, diz.
Com passagens por Aquarius, Bacurau e agora O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho, Victor é nome certo nos bastidores do cinema pernambucano.
Do nada, ele ficou sério
Um detalhe sobre essa foto do Wagner no orelhão: ela vem de um ensaio original, o que basicamente significa que essa cena não foi filmada. Não existe, no filme, Wagner atendendo esse orelhão. No roteiro, ele atende outro orelhão, em outro dia.
“Aproveitei um tempo entre uma troca de câmera. Falei pra ele que o telefone tava tocando, rimos… e do nada ele ficou sério. E aí foi quando surgiu a foto”, conta.

Outra foto que também nasceu de um ensaio original é a do cartaz de Aquarius, com Sônia Braga. Em nenhum momento ela entra no prédio Aquarius. Aquele plano da foto não existe no filme: “Isso, pra mim, é incrível. Ter uma foto original que não tá no filme. Mas tá na divulgação, no pôster, sabe?”
Manter o mistério
Em O Agente Secreto, Jucá trabalhou com Wagner Moura, conhecido por ser um dos atores brasileiros, por assim dizer, com mais “molho”, e de quem ele diz: “Existem atores, bons atores e estrelas. Wagner é outra coisa. Wagner é um astro… é uma pessoa impressionante, humilde, que entende o trabalho de todo mundo. Fotografar ele foi fácil. E, claro, as lentes gostam dele. É um fato.”
Quando pergunto como ele consegue instigar nas pessoas a vontade de assistir a um filme pela força de uma única imagem — algo que vale também para o streaming, quando giramos o catálogo e somos fisgados por uma foto — Victor hesita: “É difícil. Nem sempre sei quantas imagens vão ser divulgadas, nem quando. Então tento sempre sintetizar o espírito do filme. E isso vem do domínio do roteiro.”
Pra ele, a boa imagem de divulgação é aquela que mostra, mas não entrega.
“A imagem precisa ter um gancho com a sinopse. Mostrar bem o figurino, o personagem maquiado, mas manter o mistério. Ela é vitrine, mas não spoiler”, explica.
Fotografar em silêncio
Um ponto de virada na carreira de Victor foi quando ele começou a usar equipamentos silenciosos: “Em Aquarius, eu ainda usava uma DSLR barulhenta. Era complicado fotografar durante as cenas, tinha que pedir tempo na ordem do dia ou clicar só depois do corte.”
Com a mudança de tecnologia, seu trabalho foi mais bem recebido no set.
“Em Bacurau, tudo mudou. Passei a clicar muito mais, sem interromper ninguém. Isso mudou tudo pra mim”, conta. Aliás, foi em Bacurau que ele fez a foto de maior repercussão: Sônia Braga e Lia de Itamaracá sentadas no batente de uma igreja, com vestidos azuis idênticos: “Essa imagem rodou o mundo. Mostrava o afeto das duas personagens antes da morte de Carmelita. E pra mim, ela virou quase um símbolo do filme.”
A luz dura do Recife
Falando da cidade que é cenário de O Agente Secreto e tantos outros filmes de Kleber, Victor reflete: “Recife tem uma luz difícil. Muito sol, pouca sombra. Mas isso também ajuda a dramatizar. É desafio. E eu gosto do desafio.”
Com tanto pensamento pra chegar na imagem perfeita, ele me fala de uma grande frustração na profissão: o descaso com os créditos: “Às vezes a imprensa publica a imagem cortada, com cor alterada, sem meu nome. Isso desrespeita o trabalho. Eu tenho um cuidado imenso com o enquadramento, a composição. E ver isso ser distorcido na ponta final é revoltante.”
“Tem que furar a panela?”
Ouvi a palavra still com paixão pela primeira vez quando participei de uma residência de cinema na Itália, com a fotógrafa Miri Levi. Lembro dela. E penso que, assim como Miri, existem outras pessoas querendo fotografar cinema. Me pergunto: é um mercado muito fechado? Existe uma panela?
Sobre entrar na área, ele é direto: “Furar a panela é estar disponível. É saber quem são os produtores, manter contato, oferecer portfólio. No fim, quem contrata é o produtor. O diretor indica, mas o produtor aprova. Então é com eles que tem que se falar”, explica.
Victor incentiva quem tá começando a se aproximar do set com humildade e presença: “Se ofereça pra criar material. Atualize sempre seu portfólio. E esteja no lugar certo, na hora certa, com o olhar afiado.”
O filho nos créditos de O Agente Secreto
Nos bastidores de O Agente Secreto, Jucá me conta um episódio fofo: “Levei meu filho pro set e ele acabou conquistando todo mundo. Virou tipo um mascote da equipe. Ganhou até agradecimento nos créditos finais.”
Num filme sobre fuga e repressão, a presença do filho foi um gesto de ternura. O longa, que se passa durante a ditadura militar, tem tom de denúncia, mas com um quê de absurdo, uma certa ironia:
“Tem humor, sim. Mas é aquele humor estranho, que incomoda. A atuação de Wagner é toda contida. Ele pisa leve, porque nunca sabe com quem está lidando”, ressalta.
Essa conversa com Victor aconteceu na volta da Europa, onde O Agente Secreto foi ovacionado por 15 minutos. Na troca de mensagens, ele ainda parecia muito emocionado: “Voava Lisboa-Recife enquanto papávamos prêmios… Acabei comprando internet pra saber das coisas e não ter um AVC. Quando soube, chorei tanto que a aerolady perguntou se tava tudo bem!”
Entre um áudio e outro, dava pra sentir que a ficha ainda tava caindo. E aí ele lembrou da noite da sessão:
“Foi apoteótico. A gente bebeu, dançou, comemorou muito. Tava todo mundo feliz e aliviado. O filme já não era mais nosso. Era do mundo.”