
Algumas histórias não precisam de muito tempo para nos atravessar. Às vezes, é uma imagem, uma troca de olhares, uma carta escrita e não entregue. Todo Amor do Mundo, curta-metragem dirigido por Caio Arruda, é um desses filmes que parecem sussurrar mais do que gritar. Um gesto tímido num mundo que vive aos berros.
É uma história do cotidiano, a vivência e convivência de dois recifenses que compartilham o gosto pela arte e um pelo outro. Durante quase todo o tempo de tela, eles dividem o mesmo cenário: um apartamento em algum lugar da capital pernambucana, e o desejo, o carinho ou algo mais forte.
Há em Todo Amor do Mundo uma poesia que não se anuncia. Ela está nas cores, nos gestos contidos, nas cartas ou no peito. E também nas referências que Caio Arruda carrega com leveza, mas nunca superficialmente.
Fazer cinema no Brasil hoje é quase um ato de teimosia. Fazer cinema LGBTQIA+, então, é como escrever cartas ao vento, na esperança de que alguém as leia, que alguém se veja nelas. Caio Arruda vem desse lugar: o do cinema que resiste, que insiste, que acredita no poder de uma história íntima como forma de alcançar o outro. Seu percurso começou com filmes mais experimentais, quase sensoriais, e agora ele se pergunta como dialogar com um público maior sem abrir mão da alma.
O diretor recifense vem de uma linguagem mais experimental, marcada por imagens poéticas e narrativas fragmentadas. Em Todo Amor do Mundo, ele se pergunta: como fazer um cinema que toque mais gente, que dialogue com o público, sem abrir mão da sua verdade? Há um equilíbrio entre lirismo e clareza, entre o gesto artístico e a intenção comunicativa. Ele entende que o cinema não sobrevive apenas de edital e que é preciso também encontrar caminhos que façam o filme respirar fora da bolha.
Um dos pontos de virada para a inspiração do filme foi a música. “Só escute se acabar”, do cantor recifense Lauro, não foi só uma trilha: foi um empurrão emocional. A canção trouxe com ela uma pergunta que atravessa todo o filme: “A gente está mesmo pronto para começar algo novo?” E, talvez, Todo Amor do Mundo seja a tentativa de responder a isso, mesmo que pela dúvida.
Este é um filme sobre aquilo que fica. Sobre os recomeços que assustam. Sobre as despedidas que não se completam. Mas também sobre a coragem de tentar contar essas histórias num país onde tantas vozes são silenciadas. O recifense filma com afeto, com calma, com escuta. E isso, num tempo de urgência, já é uma forma de revolução. Talvez Todo Amor do Mundo seja, antes de tudo, uma revolução interna de Caio Arruda, digerida e transformada em um curta. Quantas cartas ele escreveu? Quantas palavras foram deixadas entre silêncios, como tantas outras feitas por diretores independentes que, diante de uma luta constante, ainda tentam, na tela, colocar o que não pode ser dito em palavras? Quantos recomeços ficaram para trás, engolidos pela falta de apoio e pelos obstáculos impostos a quem ousa fazer arte neste país onde viver de cinema é um ato de coragem, uma ousadia que desafia as condições mais difíceis?
Caio, com sua sensibilidade peculiar, se vê refletido naquelas cenas, nos gestos de Chico e Leo. O filme, de certa forma, é o espelho de suas próprias ansiedades, suas dúvidas e desejos. Talvez Leo e Chico sejam, em algum nível, Caio, com medo de ser vulnerável, de dar o primeiro passo. Essa dualidade de querer e temer, de amar e duvidar, talvez seja a metáfora mais honesta de um cineasta que, com a mesma intensidade de seus personagens, enfrenta os dilemas da arte e da vida.
Entre a vontade de se arriscar e o receio de perder, o cineasta coloca no filme não apenas os dilemas de seus personagens, mas a dor que o acompanha ao tentar dar sentido ao que parece indizível. Todo Amor do Mundo fala da inquietude experimentada por todo artista, da sensação de deslocamento, de não pertencimento, mas também da falta de coragem de buscar, mesmo que errando, o que não é incomum na trajetória do artista — de se jogar no mundo (afinal, não é assim que se descobre qual é o seu caminho como artista, experimentando?) — e ao mesmo tempo uma metalinguagem, por esse artista, Caio, ter realizado sua obra e a jogado no mundo. Também, nesse nível, uma afinidade tão poética que mistura libido e tinta no mesmo papel. Mas também fala da covardia de assumir essa intensidade quando o amor se impõe. As cartas que escrevemos por medo de olhar nos olhos e assumir nossos fracassos, nossos medos e nossa impossibilidade de ver o quanto esses “nãos” impactam o outro.
O diretor, através de uma lente experimental que transpassa um pouco de Tinta Bruta, um pouco de Wong Kar-Wai e até de Pedro Almodóvar, cria uma imagem original e sincera do amor e da arte, e o quanto um não se separa do outro, em sentidos poéticos e práticos do cotidiano, em meio às luzes de uma metrópole lá fora, que não participa como personagem, como nos filmes de Woody Allen, mas que influencia a dupla de protagonistas de uma forma que só outros recifenses intuíram.