Ópera protagonizada por indígenas recita novos imaginários sobre o Brasil – Jornal da USP

Sob direção cênica de professora da USP, espetáculo abriu a temporada lírica do Theatro Municipal em 2025

Até a próxima terça-feira, dia 25 de fevereiro, o interior da sala de espetáculos do Theatro Municipal incorpora ao afresco, às escadas em mármore e aos ornamentos em bronze as ilustrações do arte-ativista indígena Denilson Baniwa. Neste ano, as obras de sua arte se fundem à arquitetura clássica do centenário teatro localizado no centro de São Paulo, demarcando uma remontagem histórica da ópera O Guarani, que abriu a temporada lírica da casa em 2025, com ingressos esgotados para todas as datas.
Essa não é a primeira vez que o Theatro Municipal vestiu cores originárias. Em 2023, os indígenas tomaram parte do teatro durante as apresentações da mesma ópera, protagonizando a história de amor e violência entre Peri e Ceci, trama originalmente publicada por José de Alencar no século 19. Um ano depois, a ópera foi premiada internacionalmente como Melhor Produção de Ópera Latino-Americana pela associação Ópera XXI, da Espanha.
Desde então, as participações de artistas indígenas vêm concebendo outros imaginários sobre a presença dos povos originários no Brasil, Pindorama ou Abya Ala, como nomeiam esse território. Neste ano, a produção de O Guarani conta com a participação inédita da Orquestra e Coro Guarani do Jaraguá Kyre’y Kuery, formada por membros originários da Terra Indígena Jaraguá.
Como da primeira vez em que foi realizada, a produção possui concepção geral do filósofo e escritor Ailton Krenak, direção musical do maestro Roberto Minczuk e direção cênica de Cibele Forjaz, iluminadora cênica e professora da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
Em 2018, a professora realizou seu pós-doutorado A Morte e as Mortes do Rio Xingu, com pesquisa de campo junto aos povos xinguanos Juruna/Yudjá, Kayapó-Mebengokré, Araweté e Kamayurá, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP. Há sete anos, tem dedicado a sua produção científica sobre a cena em campo expandido.
“O guarani conta O Guarani”
O Jornal da USP esteve em uma das récitas desta temporada da ópera O Guarani, durante uma apresentação do segundo elenco. Antes da sessão, conversamos com Forjaz, que explicou como se deu o processo de montagem e elaboração das cenas, que contou com a participação de cerca de 30 indígenas dos povos Guarani Mbyá e Tentehar, cruzando assim territórios e histórias de terras indígenas localizadas nos estados de São Paulo e do Maranhão.
Em todas as récitas, os atos são encenados por David Vera Popygua Ju, Zahỳ Tentehar e outros pouco mais de 20 atores indígenas. Um deles é José Estevam, indígena de retomada, que investiga qual sua comunidade a partir de uma herança genealógica indígena direta. Há também participação dos solistas, divididos entre dois elencos, cerca de 70 músicos da Orquestra Sinfônica Municipal e 80 coralistas do Coro Lírico do Theatro.

Diferentemente do que tem saído nas últimas semanas na imprensa, a professora explica que nenhuma parte da ópera original, com libreto em italiano de Antonio Scalvini e Carlo D’Ormeville, foi retirada. De acordo com ela, da parte cênica, apenas foi retirado o balé. “Tivemos toda a sensibilidade de fazer uma revisão ética, com todas as letras e notas, preservando a composição de Carlos Gomes, incorporando, de fato, o Peri Éte na cena. Ou seja, é o ator guarani David Vera Popygua Ju, contando O Guarani”, diz.
Todo o espetáculo se inicia num rabisco. Projetado em tamanho real no palco do teatro, o arte-ativista indígena Denilson Baniwa começa a desenhar árvores e outros elementos cenográficos da floresta amazônica. Mas é somente após esboçar uma flecha, que ganha vida e passa a ser animada, tomando rumos que cercam toda a sala de espetáculos, que os músicos começam a tocar as primeiras notas.
Em seguida, entre os traços coloridos que simbolizam a fauna e flora brasileira, duas representações de Peri chegam ao palco: o solista não indígena Marcello Vannucci (ou Enrique Bravo, no primeiro elenco) e o ator David Vera Popygua Ju. O ator em cena estranha o outro corpo que ali se estabelece, propondo questionar quem seria aquele representado e contado inicialmente no livro.
Cibele Forjaz conta que a escolha do duplo se justifica, pois “ao invés da gente fantasiar o cantor lírico de indígena, o que chamamos de red face, o ator contemporâneo o acompanha em todos os atos, sendo ele o verdadeiro, o Eté, em guarani”.

Outros sentidos possíveis
Como escreve Ailton Krenak no libreto desta mostra, o que norteou a montagem cênica foi o pensamento e o corpo indígena, questionando Peri, “aquele sujeito solitário, imerso numa realidade colonial”. “Nós decidimos dar a ele uma família: o povo de Peri seriam os Guarani do Jaraguá”, escreve Krenak. “A ópera não seria apenas mais uma experiência estético-musical, mas um dispositivo de mudança na realidade histórica para os povos indígenas”, completa.
A ópera foi originalmente composta pelo músico brasileiro Carlos Gomes 20 anos após a publicação do livro homônimo, marcando a cena da primeira fase do Romantismo no Brasil. Segundo Forjaz, um contexto artístico que “tenta inventar a origem da história de um país e mascara as relações de violência instituída nessa suposta cordialidade, definindo que o indígena bom seria aquele convertido à fé cristã. Tudo isso encomendado pelo imperador Dom Pedro II”.
Pelas contradições históricas e políticas entre o período que foi produzido e o momento atual, a professora defende que “a remontagem não é um ataque à obra original, mas uma possibilidade de sobrevivência da ópera e é cabível que nós, pessoas deste tempo, façamos isso, é o que toda arte viva faz”. “Por isso, se ofende ter guaranis no Guarani, no fundo, é uma expressão do racismo estrutural na nossa sociedade”, critica.
Assim como na literatura, as cenas da ópera são divididas em quatro atos, que descrevem o cenário da floresta brasileira, narram o resgate de Ceci de um ataque de onças e culminam na invasão à casa de Dom Antônio, pai da jovem portuguesa, pelos Aimorés, um povo visto como inimigo na trama.
Há dois momentos em que os instrumentos clássicos presentes na ópera são substituídos pela rabeca, violão e chocalho. No primeiro ato, eles recitam a música-jogo Xe’ko Xondaro. Num segundo, eles pedem por justiça enquanto cantam a memória de Sepé Tiaraju. Entre faixas e cartazes, os indígenas questionam o que seria o homem civilizado. Em seguida, em meio a um cântico, cobram pela demarcação das terras indígenas.
Zahỳ Tentehar faz a interpretação da Onça Pajé, centrada entre um grupo de onças encenadas. “Numa espécie de força da natureza que se vinga pelos milhares de indígenas e mulheres indígenas assassinadas, estupradas e roubadas de suas culturas pelos colonizadores”, diz Forjaz. “Podemos pensar também como um rito de canibalismo guerreiro, em que há anexação dos elementos do inimigo, como uma cultura antropofágica e híbrida, como são as contradições postas na cultura brasileira”, acrescenta.
As apresentações contam com intérpretes de Libras e audiodescritores, proporcionando ao público com deficiência auditiva e visual a participação na imersão que as cenas sugerem.
“Esta é a minha primeira vez no Theatro e também a primeira vez que assisto a uma ópera. Gostei bastante e é uma experiência mágica ver tantos indígenas nesse lugar ainda visto como elitizado. Saio daqui refletindo sobre o quanto essas apresentações precisam ainda mais serem acessíveis às pessoas surdas”, contou Alan Sousa, em entrevista realizada em Libras pela reportagem. Ele esteve acompanhado da sua esposa Vânia Carla, que também é uma pessoa com deficiência auditiva.

Texto: Danilo Queiroz, especial para o Jornal da USP