A inquietante contemporaneidade de Robert Pirsig – Jornal da USP

Seria somente numa dessas prateleiras escondidas que conseguiríamos encontrar a sublime obra de Robert Pirsig, Zen e a Arte de Manutenção de Motocicletas, que completou 50 anos da sua primeira edição. O livro, que inspirou várias gerações, apresenta uma narrativa autobiográfica, na qual o título é somente uma metáfora para conduzir o leitor a uma profunda reflexão sobre os desafios íntimos de qualquer indivíduo, as relações humanas e as idiossincrasias da vida moderna e da tecnologia. Pirsig questiona ainda a alienação da sociedade em relação às tecnologias, apesar de usá-las intensivamente, levando a uma irreversível e preocupante condição de dependência e distopia. Assim, a “manutenção de motocicletas” é mais do que uma simples metáfora, pois promove uma reflexão sobre como interagir com as tecnologias sem se tornar sua refém. Ao desenvolver a habilidade de consertar motocicletas, uma de suas paixões, Pirsig externa que “nunca ficaria com a sua moto quebrada na estrada”. Em Pirsig, não há respostas prontas ou compartimentadas, a única autoajuda é um convite à reflexão.
O ponto focal de Pirsig é uma discussão sobre o termo “qualidade”, questionando fundamentalmente as classificações em todas as manifestações humanas: como podemos identificar se algo é bom ou ruim? Como classificar a “qualidade” do imponderável? Como estabelecer uma escala de classificação universal para “qualidade”? Sem navegar por esse debate filosófico, tais questionamentos continuam assolando a sociedade moderna de diversas formas, desde ações do cotidiano até questões sociais mais complexas. Por outro lado, numa era de relativismos, a percepção da realidade acabou ficando mais efêmera e difusa, dificultando ainda mais identificar a “qualidade” e distinguir entre o certo ou errado, verdadeiro ou falso, bom ou ruim, preciso ou impreciso, adequado ou inadequado, abrangendo desde questões puramente racionais até aquelas que envolvem princípios éticos e morais.
Foi justamente essa angústia para conseguir definir “qualidade” que levou Pirsig a desistir de uma promissora carreira acadêmica, passando por uma fase de enfermidade, que culminou com sua internação numa instituição para doenças mentais. A narrativa do livro, escrito após esse período de internação, representou um grande esforço do autor para se reinserir na sociedade e se reconciliar com seu passado, superando seus demônios internos.
Em seu livro, Pirsig elaborou uma crítica contundente sobre a universidade e suas estruturas, que tem uma relação direta com sua discussão sobre “qualidade”. Uma das principais perguntas que permeia essa análise é a “qualidade” no mundo acadêmico. Durante um período de docência na University of Montana, ao ministrar disciplinas associadas à escrita criativa, Pirsig tinha grande dificuldade em atribuir notas aos seus estudantes. Por outro lado, ele ficou particularmente aterrorizado quando uma lei estadual foi aprovada, que essencialmente proibia o docente de reprovar qualquer estudante, independentemente de o estudante ter consolidado os conhecimentos da disciplina. Para ele, o docente não poderia ser privado da avaliação das atividades dos estudantes, mesmo que ele questionasse a sua própria habilidade para isso.
Pirsig também se incomodava com a estrutura burocrática da universidade, que na sua percepção comprometia os fundamentos daquilo que deveria ser aquela instituição. Ele valorizava um conceito mais abstrato de universidade, em que ela deveria estar mais presente e atuante em todos os lugares da sociedade, não somente atrás dos muros e prédios físicos.
As inquietações de Pirsig sobre a universidade não se dissiparam nas décadas que se passaram, foram até amplificadas. Fato é que a universidade vem enfrentando desafios sem precedentes em escala global. De acordo com o sociólogo Michael Burawoy (University of California, Berkeley), a universidade vem enfrentando crises de identidade, legitimidade, governança e orçamentária. As inquietações de Pirsig tinham relação direta com todas essas crises da universidade, associadas primordialmente a sua conceituação e papel na sociedade moderna, além de sua gestão e financiamento público.
O livro de Pirsig não se restringiu a criticar a universidade, abordou muitas outras questões delicadas e atuais, como a autonomia universitária, saúde mental e inclusão. De qualquer forma, a mensagem de Pirsig transcende suas metáforas e atinge diretamente nosso imaginário coletivo. Para os dias atuais, nos apresentam os desafios da universidade, que passam, de certo modo, por encarar a questão da “qualidade” em todas as suas ações, como uma questão ampla sobre avaliação, seja de alunos ou pesquisadores, além das atividades de pesquisa e sua inserção na sociedade moderna. Ao resgatar Pirsig, temos não somente a oportunidade de refletir sobre nossos desafios, mas também de desfrutar um pouco do Zen, da arte e das motocicletas.
________________
(As opiniões expressas nos artigos publicados no Jornal da USP são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem opiniões do veículo nem posições institucionais da Universidade de São Paulo. Acesse aqui nossos parâmetros editoriais para artigos de opinião.)